4 de março de 2009

enriquecimento ambiental/comportamental

"liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda"
cecília meireles

eu lembro dessa frase no ilha das flores, o melhor curta do mundo. mas vamos falar do exato oposto, que é a condição de cativeiro de animais.

antes de mais nada, não sou contra animais cativos em zoos, desde que os animais sejam saudáveis e tenham o bem estar promovido, não vejo problema algum. comparar a condição do animal cativo ao do animal doméstico também seria demasiado simplista e reducionista, uma vez que a domesticação é um processo bem mais demorado, havendo a possibilidade de adaptação e gosto pela companhia humana.

muitas pessoas são veementemente contra o cativeiro de animais, mas o que se deveria fazer com milhares de animais já cativos por todo o planeta? soltá-los seria um grande genocídio animal, uma vez que tais animais muitas vezes não teriam condições de sobreviver, por não terem desenvolvido certos conhecimentos intrínsecos a condição livre, como técnicas de forrageamento (busca por alimento), conhecimento da estrutura social, técnicas de defesa/fuga, coerência das vocalizações produzidas, etc, além disso, correm potenciais riscos de agirem como vetores de novas doenças numa reintrodução malfeita, contaminando os animais selvagens.

acho que é senso comum as pessoas acharem que a reintrodução de um animal ao seu hábitat natural seja simples, mas não é. nós, como animais sociais, deveríamos ter mais sensibilidade em perceber que não é fácil chegar num bando novo. seria como visitarmos um local com cultura totalmente distinta, em que os hábitos são outros, as cores e cheiros também. pro animal é infinitamente mais difícil por diversas razões que não vou minuciar aqui, talvez numa outra ocasião.

então vamos ao que interessa.

antigamente, os zoológicos tinham o intuito de exibir os mais diversos animais quanto fossem possíveis, para isso muitas vezes os retiravam da natureza. os recintos destes animais eram basicamente um cercado que separasse o animal do público.

nesses recintos, o chão era de concreto, pois facilitava a limpeza, apesar disto causar diversos danos à saúde dos animais, principalmente com problemas ortopédicos e dermatológicos que surgem do contato permanente com este tipo de substrato. as grades eram de ferro e inevitavelmente animais roíam as grades e quaisquer objetos que tivessem acesso, estragando os dentes e elevando o nível de estresse.

nessas condições, é claro que sou contra animais em cativeiro, e até acho legal que organizações como o peta façam barulho contra bichos nessas condições:
urso em condições precárias de cativeiro, foto do peta india

o vídeo abaixo é do último exemplar do tigre da tasmânia que se tem conhecimento, e era de cativeiro. ao assistir o vídeo podemos ver que ele não faz nada demais a não ser andar pra lá e pra cá, se coçar, deitar e comer. e nesse último parece ser o momento que ele está menos apático que nos momentos anteriores, confira:


tigre da tasmânia, extinto em 1936

mas nos tempos atuais, com todos os avanços em fisiologia, psicologia/comportamento, medicina veterinária, zootecnia e outras áreas do conhecimento relacionados a vida de um animal cativo, preocupações com a saúde do animal cresceu, havendo o monitoramento e promoção do bem-estar físico, psicológico e ambiental do animal, o que leva à melhor saúde que o conhecimento humano permite e os recursos financeiros, (algumas vezes bem) limitados, possam bancar.

a idéia básica do enriquecimento é promover um ambiente mais natural possível, fazendo o animal se comportar mais naturalmente, sendo estimulado tanto psicológica quanto fisicamente.

imaginem uma pessoa sedentária, que só come e vê tevê. provavelmente ela não sinta nenhum estímulo para mudar a situação, não tem companhia para se divertir, enfim, a vida dela é uma gigantesca monotonia. num zoo, um animal cativo pouco estimulado seria como a pessoa sedentária, mas com três diferenciais agravantes: o primeiro, de ser visto por seres humanos do lado de fora do cercado, o segundo é de ter um local muito menor do que o espaço que utilizaria em vida livre e o terceiro e mais importante, ele não tem controle sobre suas decisões.

um animal entediado é como um ser humano entediado, não se motiva a fazer muita coisa além de comer, se coçar, e outros comportamentos altamente repetitivos, o qual chamamos de estereotipias ou comportamento estereotipado.

comportamentos estereotipados são típicos de animais entediados. podem se coçar ou se lamber a ponto de se machucarem, ficam zanzando em círculos pelo recinto (pacing), dentre tantas outras anomalias comportamentais, podendo até levar a distúrbios psicológicos em que se tornam antissociais, agressivos e destrutivos(para estravasar a energia acumulada por nada fazer). há até mesmo casos de mães rejeitando filhotes ou mesmo devorando-os devido ao alto nível de estresse que apresentam.

lobos fazendo pacing num recinto com chão de concreto no zoo de belgrado

as consequências de um animal pouco estimulado psicológica e fisicamente é bastante diverso, caso v. tenha um cão é fácil perceber como ele se torna destrutivo depois de uns dias sem passear.

mas e se manejarmos o bicho de tal forma que as mudanças motivem o animal a ser mais interessado pelo mundo a que está restrito?

aberta esta possibilidade há muita coisa que pode ser feita.
o mais importante seria dar mais controle que o animal tem sobre o ambiente. para isso podemos criar uma área sombreada e acrescentar alguma vegetação que seja coerente com a ecologia do bicho. já é um bom começo, mas não o suficiente. o bicho já pode se expor à sombra ou sol quando quiser. se tiver um abrigo que não seja visível ao visitante também é uma grande mudança, pois permitimos que o animal se exiba quando queira, podendo se esconder quando não se sentir confortável. e assim, com medidas relativamente simples podemos moldar todo o ambiente.

girafa sob sombra, no zoo de são paulo - joe baba

dar controle sobre o ambiente quer dizer isso, criar oportunidades para que um animal possa escolher fazer ou não determinada ação. podemos para isso introduzir objetos que os motivem a fazer algo que queremos dele, é como uma negociação sem palavras.
brinquedos podem ser introduzidos para que eles gastem um tempo no recinto, de forma que os visitantes de um zoo possa observá-los.

uma outra forma muito comum de se facilitar a relação do tratador com os animais é o adestramento por reforço positivo, é a mesma técnica utilizada no adestramento de cães. basicamente cada ação correta é premiada, reforçando, facilitando e acelerando o aprendizado/adestramento.
o adestramento permite ao tratador dar alguns comandos de voz (com devida atenção à entonação) juntamente com gestos corporais para que o animal faça ou permita fazer algo.
no zoo a utilidade disto permite a limpeza adequada de recintos e dos próprios animais, o cambiamento (troca de recintos), aplicação de medicamentos, etc. tudo para melhorar e monitorar a qualidade de vida destes animais.

o condicionamento é geralmente feito com comida, pois este item tem um grande poder de motivação, fazendo o animal se esforçar para receber o alimento como recompensa. aliás uma das formas mais comuns de enriquecimento é modificar a forma que o alimento se apresenta.

urso polar no zoológico do alaska, perdendo um tempo para comer maçãs - neatorama

uma atividade que antigamente era a simples oferenda de alimentos ao animal se torna uma das atividades mais importantes fazendo o animal se esforçar para adquirir o alimento. pode ser um "sorvete" de sangue para carnívoros, pode ser um recipiente que o animal tem que destruir, ou um alimento escondido no recinto, tudo depende da criatividade do pessoal responsável por isso.

é sempre bom levar em conta a biologia do animal para que o enriquecimento seja otimizado ao máximo. para girafas, por exemplo, é possível criar um comedouro em que o animal utilize a língua para alcançar o alimento, um comedouro de língua, ou tongue feeder. é só levarmos em conta que este animal, ao comer, agarra a folha com a língua, enrolando-a na folha para segurar e puxar.

há diversas informações pela internet, mas uma que me chamou a atenção é o the fort worth zoo's enrichment online, neste site, diversas idéias são propostas para se fazer o enriquecimento, e não tem como dizer que eles não têm embasamento, pois são coisas que eles já fizeram no zoológico fort worth ou em outros, tudo com referências, análises de custos, riscos, materiais necessários, descrições, enfim, é um prato cheio pra quem mexe com essas coisas.

mangueira de bombeiro trançada em forma de cubo para enriquecimento de elefantes do zoo de toronto

o importante é que eles estejam psicologicamente saudáveis, e para isso pode-se introduzir diversos artifícios, desde que o animal se exercite. bolas de diversos materiais são utilizados, desde bolas caseiras feitas com mangueira de bombeiro até boomer balls(bolas industrializadas próprias para animais como hipopótamos, grandes felinos).

kendra, tigre siberiano do assiniboine park zoo, com sua boomer ball. clique no link pra ver o blog do zoo

podemos também utilizar diversos artifícios que geralmente utilizamos para pessoas e outros animais e promover o bem estar. técnicas de acupuntura, t-touch e podologia são utilizadas no zoológico de oakland para suplementar as técnicas convencionais de bem-estar animal. confira no vídeo a seguir.



no brasil, infelizmente é um campo pouco explorado, não por atraso no conhecimento - pois muitos pesquisadores brasileiros têm feito grandes avanços nesta área - mas principalmente por empecilhos da burocracia nestes tipos de instituições, que geralmente são públicos, e assim sendo tem pessoal qualificado limitado, demora pra aquisição de novos recursos, e tudo mais que estamos cansados de ver no sistema público brasileiro.

a aplicação real disto se estende a quaisquer criações de animais, sejam domésticos, de produção, em biotérios, ou onde quer que haja animais sob cuidado do homem. onde quer que estejam, merecem o bem-estar.


fonte consultada:
- second nature: environmental enrichment for captive animals. david j. shepherdson, jill d. mellen, michael hutchins. (1998)

2 comentários:

ligia disse...

durante bastante tempo, ouvi opiniões realmente hostis em relação a animais cativos... mais que isso... ouvi opiniões hostis sobre o estudo do comportamento desses animais... como ter certeza que aquele comportamento realizado acontece da mesma maneira em vida livre, já que as condições são tão diferentes? "comportamento de animais cativos não tem valor científico!"

não acredito nisso.. acho que são informações importantes... tudo depende da maneira como isso está inserido no contexto em que aparece.
o animal já está cativo. nenhum zoo, hj em dia, irá retirar um animal do seu meio para colocá-lo em exposição... o animal chega ao zoo, pode ser de criadouros, vítima de apreensão, encontrado atropelado, recolhido de circos... e alguns, nascem nos zoos...
e agora, o bixo tá lá. e tem problemas de saúde por estar entediado.

já vi filmes realmente tristes, de animais que precisam tomar anti-depressivo pro resto da vida, por não conseguir administrar sua condição.
o enriquecimento é uma alternativa a esses problemas... é propiciar aumento na qualidade de vida... é dar ao animal o direito de se esconder... de não querer ser visto... é respeitá-lo.

tá longe de ser o ideal... longe de ser a mesma coisa que viver em vida livre, mas ajuda a melhorar. e dá retorno. pra se ter idéia, existem testes estatísticos aplicáveis com n=1, pra caso de animais sozinhos em recintos. tem como provar se é realmente eficaz, e costuma ser.
basta escolher o estímulo certo... a maneira certa de envolver e de cativar o animal. e pra isso, precisa conhecer a biologia da espécie e respeitar essa diversidade, tanto em termos específicos, como individuais.

e pra terminar, ressaltar uma coisinha boba, mas que pode passar... qualquer enriquecimento precisa ser seguro! é fundamental pensar nas possibilidades que a novidade traz, vantagens e desvantagens, pra que o enriquecimento não vire desastre.
vale lembrar, també, que é preciso alternar, modificfar os estímulos introduzidos, pois os animais se habituam a eles, e eles deixam de ser interessantes. é preciso que sempre haja novidades.

acho que funciona como terapia não só pros animais cativos... é dar vazão à criatividade e ao cuidado...

glenn makuta disse...

é verdade, li, tinha me esquecido desses detalhes que são tão cruciais como a habituação.